Separar a Obra do Autor

23 de fevereiro de 2022

    Quando pensei em escrever essa matéria, ela seria muito mais longa do que acabou ficando, e olha que ficou enorme!! Esse é o grande problema quando a ideia vem à mente e vamos deixando passar dias e semanas até efetivamente escrevê-la. Todavia, era (e continua sendo) um assunto que faz tempo quero escrever. 

    Antes de continuar, queria deixar claro, que como um blog pessoal, e não uma fonte de notícias ou de informações/estudos, o que trago aqui é minha opinião singular depois de ler diversos textos sobre o assunto somado a características da minha personalidade e pensamento de vida no momento que escrevo. (Sempre mudamos). 

    Pois bem, essa minha vontade de abordar o assunto começou quando a J.K.Rowling voltou em pauta por causa de não ter sido convidada para o reencontro de Harry Potter. Muitos alegando que na verdade, Harry Potter deveria cair em esquecimento devido a autora sempre se envolver com opiniões transfóbicas. 

    Eu particularmente não curto J.K.Rowling já faz muitos anos devido as polêmicas de plágio e apesar de gostar MUITO de Harry Potter, não sou fã fervorosa (ou parte de um fandom) em relação a nenhuma obra. Mesmo assim me peguei pensando nesse assunto e ele tem várias camadas bem chatas de se tratar. 

   

    A liberdade de expressão dos idiotas. 

A primeira coisa que precisamos pensar é até que ponto a liberdade de expressão de um artista deve ir. E diferente de um político eu acredito que até o ponto que esteja de acordo com a lei. Esse é um assunto muito delicado e que pode gerar desentendimentos se não debatido de uma forma tranquila. Eu sou a favor dos direitos trans, eu me sensibilizo com a causa, mas a Rowling não precisa ser como eu. Mesmo que EU considere isso o básico de dignidade do ser, ela não está “errada” em ter a opinião dela. 

    “Mas e se alguém se sente desrespeitado?”

    Isso é subjetivo, há muitos níveis de desrespeito, e quem se sente desrespeitado deve processar a pessoa que a desrespeitou. 

    Mas a transfobia como crime e a expressão de opinião idiota são coisas diferentes e a J.K.Rowling já se mostrou muito idiota, mas nunca incitou o ódio, a perseguição ou a violência, seja física ou verbal. Eu fiquei horas lendo vários tweets dela e todos variam em muitas formas de “não concordo, não gosto, não aceito”, e isso, todos têm o direito de dizer, a gente goste ou não. 

    “Mas ela é famosa, vai incentivar as pessoas serem assim”

    Errado. E aí entra o segundo item a ser abordado, mas primeiro, vamos lá. É aí que entra a diferença de político para algum artista. Vou usar um exemplo mais brasileiro, um político preconceituoso causa estragos gigantescos e já vimos isso com muitos que vão além do Bolsonaro. Você vai gostar ou desgostar pelo que está sendo feito no Governo e mesmo que você tenha conhecido aquele político pela indicação de um artista, no fim, quem vai decidir se vai ou não apoiar, é você. 

    E agora, usando o exemplo da Rowling, ser a favor ou contra pessoas trans é algo que inevitavelmente todo mundo vai ter uma opinião e se uma pessoa concorda com a Rowling não é porque É a Rowling que está falando, é porque esse preconceito já existe e calhou do PreconceituosoA achar um PreconceituosoB que é famoso. Ninguém vai virar preconceituoso porque ela é. A pessoa se torna assim numa construção muito mais macro de sociedade. 

    “Então tudo bem deixar ela lá cuspindo bosta?”

    BEM não é, mas também não é proibido. O que não podemos é dar palco. É de todo o direito de nós ignorarmos, debatermos com ela (do jeito que Emma Watson e Daniel Radicliff já discordaram publicamente dela) e é isso. Eu acho incrível que as pessoas ainda fazem tanto alarde para ela, eu já não sigo ela no twitter faz uns 8 anos e só lembro da existência dela quando o pessoal trás em pauta novamente.


    As ideias idiotas expressas e o momento que foram escritas.

    Toda essa introdução enorme para entrar no assunto mais importante. 

    A Obra. 

    A pergunta mais importante que se deve fazer é: de alguma forma aquela obra passa a visão do autor? 

    Pegue Sítio do Picapau Amarelo, Monteiro Lobato era absurdamente racista. E quando você assiste despreocupado, não parece que tem algo a se preocupar, mas tem. Sítio do Picapau Amarelo, inclusive a série de 2001 tem vários detalhes racistas que vão incrustando na cabeça da criança e propagando uma ideia. E por isso a obra e o autor se tornam inseparáveis e ambos devem cair no esquecimento. 

    Mas agora pegue Harry Potter, você não consegue criar links com os preconceitos da autora. Não é uma obra preconceituosa. Não é uma obra que propaga as ideologias dela. E tem mais, será que quando escreveu Harry Potter ela era tão preconceituosa como é hoje? Será se ela escrevesse Harry Potter hoje seria diferente?

    Recentemente li Cidade dos Ossos vi uma passagem que ao meu ver foi beeem transfóbica. Porém atualmente a autora sempre levanta bandeiras para os movimentos LGBTQIA+, mas será que na época, 10 anos atrás, ela tinha a cabeça totalmente livre de preconceitos? 

    Como funciona isso? A gente tem que crucificar eternamente uma fala ruim de uma pessoa 10 anos atrás? E o caminho contrário? Temos que crucificar obras de mais de 20 anos atrás de uma pessoa que se mostrou preconceituosa depois? 

    Acho que uma das análises mais importantes que precisamos fazer em uma obra é o momento que ela foi escrita e lançada, tanto na sociedade, quanto na vida do autor. E analisar como aquela obra irá refletir no decorrer de cada geração. Se daqui 100 anos, essas autoras sobreviverem, Harry Potter não passará uma mensagem de transfobia, (apesar de passar a de pré-determinação de personalidade por casas kkkk) enquanto isso Cidade dos Ossos vai levar para a eternidade aquela piadinha de mal gosto. E o que eles vão ver da autora? Alguém que enlouqueceu? Pra mim a Rowling é o exemplo do preconceito que cresce conforme o movimento também cresce. Daqui 100 anos quando analisarem a expansão dos direitos LGBTQIA+ a partir do século XXI vão ver que também veio carregado de forças opostas muito insistentes, principalmente pelo medo da mudança. 

    Não tenho dúvidas, e até fico curiosa para saber, se ela lançasse um livro HOJE, se ele seria carregado com as ideologias que ela tem atualmente. 


    Fomentação Financeira. 

    Um dos argumentos que eu mais recebi quando abri a caixinha do instagram perguntando sobre o assunto foi sobre ser complicado dar dinheiro para pessoas que pensam como a Rowling, porém, para mim, analisando bem friamente, esse é argumento mais fácil e hipócrita de reproduzir quando você está querendo uma justificativa. 

    Um exemplo usando a própria caixinha do Instagram. 

    Essa caixinha foi respondida de um smartphone, produzido por industrias que utilizam de trabalho quase escravo (até de crianças) de asiáticos. 

    Essa caixinha foi respondida de um aplicativo que aumenta a taxa de suicídios e depressão entre jovens devido à pressão social e psicológica que causa. 

    A pessoa provavelmente enquanto olhava meus stories estava usando pelo menos 1 peça de roupa produzida no Vietnã ou no Brás (produzidos também por pseudo-escravos em ambos os casos). 

    Então eu pergunto, a preocupação de fomentação financeira de pessoas envolvidas em ideologias idiotas realmente existe? Ou só quando é fácil? Só quando não muda nada na nossa vida?

    Desde começo eu escolhi usar a Rowling como exemplo nessa matéria porque ela é o caso mais famoso, então vou continuar a usar ela. 

    O primeiro ponto. Nem da metade do dinheiro efetivamente vai para ela. Quando você compra um livro do Harry Potter, ou algum produto, você está alimentando uma cadeia inteira de pessoas. Inclusive os atores que discordam das ideologias transfóbicas. Quando você compra um livro você apoia um dos ramos (o editoral) que mais se debate para sobreviver numa população que demonstra estar cada vez lendo menos (e isso não está acontecendo só no Brasil). 

    O segundo ponto. Ao “dar seu dinheiro para ela”, você realmente está fomentando a causa transfóbica? Rowling já doou um total de 160 milhões de dólares para a caridade. Nunca esteve envolvida em transferir dinheiro para movimentos preconceituosos ou para políticos dessas causas (diferente do Silvio Santos que injetava um monte de dinheiro na ditadura). Acho que quando ela efetivamente começar a fazer isso teremos um ponto muito válido para não comprar mais nada de Harry Potter. Até lá, usar esse argumento é só uma forma de ficar cool pro povo do twitter enquanto andamos por um mar de verdadeiras fomentações financeiras horríveis. 


    Conclusão

    No fim, nada disso tudo passa além do querer ou não querer. Você pode ou não consumir uma obra independentemente de quais argumentos possamos levantar no assunto. Você pode ler e/ou comprar Harry Potter e não vai estar mais errado do que a pessoa que escolheu não ler e/ou comprar. Diria que errados estão aqueles que por terem chegado à uma conclusão própria (ou ainda usando a conclusão dos outros) acham que são melhores que os com opiniões diferentes.

    A escrita também é uma forma de arte e ela deve ser avaliada num todo, seja ela ficção ou não. Ler tendo consciência de si e do redor é o mais importante. Do mesmo jeito que ler O Capital não me fez marxista, ou ler Desobediência Civil não me fez anarquista, ler Harry Potter não me fez transfóbica. Separar o autor da obra é algo interpretado de maneira errônea. Você não separa a criação do criador quando analisa, quando se diverte lendo. Mas você separa você mesmo do autor. Você não se torna o autor ou passa a concordar com ele por apreciar uma leitura. Se assim fosse, depois de Desobediência Civil esse blog nem seria possível, pois estaria na floresta sonegando impostos. 

    Separar obra do autor é primeiro um trabalho interno de saber que o mundo vai além dos padrões de ser ou não ser imposto pelo twitter. Eu usei muito a Rowling como exemplo porque ela é popular, mas Marx era machista ao extremo e racista. Entender o conceito de classes e da mais-valia te faz racista?! 

    E segundo, separar obra do autor, principalmente no caso da Rowling, é um trabalho de entendimento que há idiotas no mundo, e que se eles seguem a lei, eles têm o direito de serem. Ela deveria ter o direito de participar do próprio documentário, mas perdeu esse direito porque as diferenças de pensamento se tornou algo inadmissível nesse planeta. 

    E sim, mesmo que eu acho que ela seja uma velha preconceituosa que posta abobrinha, afastar propositalmente, por questões de marketing (porque a Warner não está realmente preocupada com a causa) de algo que foi ela que criou é a comprovação que a intolerância está em todos os lados e não só naquele que achamos que é o errado. 

Sobre Ingrid Boni

Viciada em livros do mais diversos tipos. Porém especialmente apaixonada por fantasia e ficção histórica.

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